sábado, 29 de maio de 2010

LEONARDO DA VINCI










"(...) De um homem que consegue chegar até o conhecimento não se poderá dizer que ama ou odeia; situa-se além do amor e do ódio. Terá pesquisado em vez de amar. E será, talvez, este o motivo pelo qual a vida de Leonardo foi tão mais pobre de amor do que a de outros grandes homens, e de outros artistas. As tormentosas paixões de uma natureza, que inspiram e que esgotam, paixões que foram, para outros, fonte das experiências mais plenas, parecem não o haver atingido.

Existem ainda outras conseqüências. A investigação substituiu a ação e também a criação. Um homem que começou a vislumbrar a grandeza do universo com todas as suas complexidades e suas leis, esquece facilmente sua própria insignificância. Perdido de admiração e cheio de verdadeira humildade, facilmente esquece ser, ele próprio, uma parte dessas forças ativas e que, de acordo com a medida de sua própria força, terá um caminho aberto diante de si para tentar alterar uma pequena parcela do curso preestabelecido para o mundo - um mundo em que as menores coisas são tão importantes e extraordinárias quanto o são as coisas grandiosas.(...)

Qualquer pessoa que pense nas pinturas de Leonardo recordar-se-á de um sorriso notável, ao mesmo tempo fascinante e misterioso, que ele punha os lábios de seus modelos femininos. É um sorriso imutável, desenhado em lábios longos e curvos; tornou-se uma característica do seu estilo e o termo `Leonardiano’ tem sido usado para defini-lo. Este sorriso no rosto estranhamente lindo da florentina Mona Lisa del Giocondo tem causado, em todos que o contemplam, os efeitos mais fortes e controvertidos. [Ver Lâmina II.] Este sorriso requer uma interpretação e de fato tem merecido as mais variadas explicações sem que nenhuma ainda tenha conseguido satisfazer. `Voilà quatre siècles bientôt que Monna Lisa fait perdre la tête a tous ceux qui parlent d’elle, après l’avoir longtemps regardée.’

Muther (1909, 1, 314) escreveu: `O que sobretudo enfeitiça o espectador é a magia demoníaca desse sorriso. Centenas de poetas e escritores já escreveram sobre essa mulher que ora parece sorrir-nos tão sedutoramente, ora parece fitar o espaço, friamente e sem alma. E ninguém jamais decifrou o enigma de seu sorriso nem leu o significado de seus pensamentos. Tudo, até mesmo a paisagem, assemelha-se a um sonho e parece sofrer a influência opressiva da sensualidade.’

A idéia de que dois elementos diferentes estejam combinados no sorriso de Mona Lisa já foi suscitada por diversos de seus críticos. Muitos deles vêem na expressão da linda florentina a mais perfeita representação dos contrastes que dominam a vida erótica das mulheres; o contraste entre a reserva e a sedução, e entre a ternura mais delicada e uma sensualidade implacavelmente exigente, destruindo os homens como se fossem seres estranhos. Este é o ponto de vista de Müntz (1899, 417): `On sait quelle énigme indéchiffrable et passionnante Monna Lisa Gioconda ne cesse depuis bientôt quatre siècles de proposer aux admirateurs pressés devante elle. Jamais artiste (j’emprunte la plume du délicat écrivain qui se cache sous le pseudonyme de Pierre de Corlay) “a-t-il traduit ainsi l’essence même de la féminité: tendresse et coquetterie, pudeur et sourde volupté, tout le mystère d’un coeur qui se réserve, d’un cerveau qui réflechit, d’une personnalité que se garde et ne livre d’elle-même que son rayonnement…” O escritor italiano Angelo Conti (1910, 93) descreve que viu no Louvre o retrato iluminado por um raio de sol. `La donna sorrideva in una calma regale: i suoi istinti di conquista, di ferocia, tutta l’eredità della specie, la volontà della seduzionne e dell’agguato, la grazia del inganno, la bontà che cela un proposito crudele, tutto ciò appariva alternativamente e scompariva dietro il velo ridente e si fondeva nel poeme del suo sorriso… Buona e malvagia, crudele e compassionevole, graziosa e felina, ella rideva…’

Leonardo passou quatro anos pintando esse retrato, talvez de 1503 até 1507, durante a sua segunda permanência em Florença, época em que tinha mais de cinqüenta anos. Segundo Vasari, durante o trabalho Leonardo empregou todos os meios ao seu alcance para divertir essa senhora e conservar-lhe no semblante o sorriso famoso. No seu estado atual, o quadro conserva pouco de todos os detalhes delicados que seu pincel, na época, reproduziu sobre a tela; enquanto foi pintado, foi proclamado como sendo o mais elevado que a arte poderia realizar, porém é sabido que o próprio Leonardo não se satisfez com o resultado; declarando que estava incompleto não o entregou à pessoa que o encomendara, levou-o consigo para a França, onde o seu patrono, Francisco I, o adquiriu para o Louvre.

Deixando sem solução a enigmática expressão no rosto de Mona Lisa, vamos anotar o fato inegável de que o seu sorriso, que tanto fascina todos os que têm contemplado durante esses quatro séculos, exerceu também poderoso fascínio sobre Leonardo. Dessa data em diante, o sorriso cativante reaparece em todos os seus quadros assim como nos de seus alunos. Sendo a Mona Lisa de Leonardo um retrato, não cremos que lhe tivesse imprimido, por sua própria inspiração, característica tão expressiva à sua face - característica que não lhe pertence realmente. Torna-se, portanto, inegável concluir que ele encontrou esse sorriso em seu modelo e ficou por ele tão enfeitiçado que daí por diante reproduziu-o em todas as criações livres de sua fantasia. Esta interpretação, que não poderá ser considerada forçada, é defendida, por exemplo, por Konstantinowa (1907, 44):

`Durante o longo período em que o artista trabalhou no retrato de Mona Lisa del Giocondo, estudou tão apaixonadamente os detalhes mais sutis e delicados deste rosto que passou a reproduzir os seus traços - sobretudo o seu misterioso sorriso e estranho olhar - em todos os rostos que veio a pintar e desenhar depois. Até no retrato de São João Batista, no Louvre, pode-se perceber esta expressão facial, tão peculiar da Gioconda; mas é sobretudo no rosto da Virgem Maria, no quadro da “Madona e o Menino com Sant’Ana”, que mais claramente o reconhecemos.’(...)

Ainda que o material histórico de que dispomos fosse muito abundante e os mecanismos psíquicos pudessem ser usados com a máxima segurança, existem dois pontos importantes onde uma pesquisa psicanalítica não nos consegue explicar por que razão é tão inevitável que a personagem estudada tenha seguido exatamente essa direção e não outra qualquer. No caso de Leonardo, tivemos de sustentar o ponto de vista de que o acaso de sua origem ilegítima e a ternura exagerada de sua mãe tiveram influência decisiva na formação de seu caráter e na sorte de seu destino, pois a repressão sexual que se estabeleceu depois dessa fase de sua infância levou-o a sublimar sua libido na ânsia de saber e estabelecer sua inatividade sexual para o resto de sua vida. Mas esta repressão após as primeiras satisfações eróticas da infância não tinha necessariamente de se estabelecer; em outra pessoa talvez não tivesse acontecido, ou talvez tivesse atingido proporções muito menores. Temos de reconhecer aqui uma margem de liberdade que não pode mais ser resolvida pela psicanálise. Assim, também, não podemos afirmar que a conseqüência dessa onda de repressão tivesse sido a única possível. É provável que uma outra pessoa não tivesse conseguido livrar da repressão a maior parte da sua libido sublimando-a numa sede de conhecimentos; sob as mesmas influências, teria sofrido perturbação permanente de sua atividade intelectual ou adquirido uma disposição incoercível para a neurose obsessiva. Deixamos, portanto, estas duas características de Leonardo que não podem ser explicadas pela psicanálise: sua tendência muito especial para a repressão dos instintos e sua extraordinária capacidade para sublimar os instintos primitivos.

Os instintos e suas transformações constituem o limite do que a psicanálise pode discernir; daí em diante cede lugar à investigação da biologia. Somos obrigados a procurar a fonte da tendência à repressão e a capacidade para a sublimação nos fundamentos orgânicos do caráter, sobre o qual se vem erigir posteriormente a estrutura mental. Já que o talento artístico e a capacidade estão intimamente ligados à sublimação, temos de admitir que a natureza da função artística também não pode ser explicada através da psicanálise. A tendência da pesquisa biológica, hoje em dia, é explicar as principais características orgânicas de uma pessoa, como o resultado da mistura das disposições masculina e feminina, baseada em substâncias [químicas]. A beleza física de Leonardo e o fato de ser canhoto poderão ser mencionadas em apoio a este ponto de vista. Não abandonaremos, no entanto, o campo da pesquisa puramente psicológica. Nosso objetivo continua a ser demonstrar a relação que existe, seguindo o caminho da atividade instintiva, entre as experiências externas de um indivíduo e suas reações. Mesmo que a psicanálise não esclareça o poder artístico de Leonardo, pelo menos torna, para nós, mais compreensíveis suas manifestações e suas limitações. Parece, em todo caso, que somente um homem que tivesse passado pelas experiências infantis de Leonardo poderia ter pintado a Mona Lisa e a Sant’Ana, ter acarretado um destino tão melancólico para suas obras e ter embarcado numa carreira tão extraordinária de cientista, como se a chave para todas as suas realizações e fracassos estivesse escondida na sua fantasia infantil sobre o abutre.

Mas será que não devemos fazer objeções aos achados de uma investigação que atribui a circunstâncias acidentais, referentes à sua constelação parental, uma influência tão decisiva no destino de uma pessoa? O que, por exemplo, fez com que o destino de Leonardo viesse a depender de sua origem ilegítima e da esterilidade de sua primeira madrasta, Donna Albiera? Creio que ninguém terá o direito de fazê-lo. Se considerarmos que o acaso não pode determinar nosso destino, será apenas um retorno ao ponto de vista religioso sobre o Universo, que o próprio Leonardo estava a ponto de superar quando escreveu que o sol não se move [ver em [1]]. Sentimo-nos naturalmente decepcionados por ver que um Deus justo e uma providência bondosa não nos protegem melhor contra tais influências durante o período mais vulnerável de nossas vidas. Ao mesmo tempo, estamos sempre demasiadamente prontos a esquecer que, de fato, o que influi em nossa vida é sempre o acaso, desde nossa gênese a partir do encontro de um espermatozóide com um óvulo - acaso que, no entanto, participa das leis e necessidades da natureza, faltando-lhe apenas qualquer ligação com nossos desejos e ilusões. A distribuição dos fatores determinantes de nossa vida entre as `necessidades’ de nossa constituição e o `acaso’ de nossa infância pode ser ainda incerta em seus detalhes; mas não será mais possível duvidar precisamente da importância dos primeiros anos de nossa infância. Nós todos ainda sentimos muito pouco respeito pela natureza, que (nas palavras obscuras de Leonardo, que lembram o Hamlet) `está cheia de inúmeras razões [`ragioni’] que nunca penetram a experiência.’

Cada um de nós, seres humanos, corresponde a uma dessas inúmeras experimentações por meio das quais as `ragioni’ da natureza são compelidas a compartilhar a experiência."

(Trechos de Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância (1910) in FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas Completas, disponível em www.dominiopublico.gov.br)

(Algumas telas são de alunos ou inspiradas/re-tocadas ou de discutível autoria. Para maiores informações verifique as gravuras disponiveis em ficheiro da "wikipedia")

Um comentário:

  1. Caros visitantes, postei apenas algun trechos para aguçar a curiosidade do leitor. Textos clássicos como esse devem ser lidos na íntegra, para obtermos informações e produzirmos interpretações coerentes: por isso a indicação da obra completa, caso não consigam é só me contactar, que eu enviarei. Beijos a tod@s.
    Elton Carneiro

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